LITERATURA

 

Princesa Isabel - PB, quarta-feira, 29 de junho de 2005

 

O dia dos Cachorros
(Aldo Lopes)

"O dia dos cachorros", por Aldo Lopes.
Prêmio Câmara Cascudo - 2005

 

 

CAPÍTULO 1

Não importa onde o galo esteja, importa o canto, pois de canto em canto a história se entretece, como o sucedido ao finado João Sem-Medo, hoje em bom lugar, um lugar tão bom quanto aquele onde estivera quando se ouviu dizer que os Cavaleiros estavam prestes, prestes a saltar sobre Princesa. E como eram, o que queriam, quantos eram e para onde iam, nada deles se sabia. A notícia deixou João meio afobado. Se já vinham pelo Sinal, ao amanhecer estariam com as patas dos cavalos tirando faíscas nas pedras da Rua Grande, a poucas braças do abdômen das crianças.

- Morrinha de calor! - queixou-se o Coronel Barbaciano. Não dormira depois do almoço nem na noite anterior. Mas assim que ouviu o "ô de casa" e reconheceu a voz de João Sem-Medo, pulou da rede e foi à janela.

- Só vim saber se Princesa vai resistir! - gritou João, da calçada, com a mão na testa para se proteger do sol.

- Resistir a quê se os homens só tão passando?

João Sem-Medo esperava de Barbaciano uma atitude mais dura, um chamamento às armas e não aquela resposta sem firmeza, como se a dentadura estivesse fora do encaixe da gengiva. As palavras do Coronel se espatifaram na ventania que destampou naquele instante. Era o início dos ventos da debulha. Toda época de colheita, Nosso Senhor assoprava aquele mundão todo com os imensos foles do seu pulmão e mandava pros ares nuvens de cisco e pó, deixando o milho em límpidas tulhas oleosas. Só na cata do algodão, em setembro, é que vinha a calmaria.

E lá se foi João no caminho de casa com aquela ventania toda lhe açoitando as costas. Ele ia com o capote desabotoado e as mãos nos bolsos e de vez em quando abria os braços para o vento empurrá-lo mais ainda. Naquela hora o sol era uma brasa suspensa a meio palmo da proa da serra e desenhava no chão a sombra de João Sem-Medo, que João parecia um morcego gigante batendo em retirada. E podia vir um furacão, uma tromba de vento arregaça-mundo, que nem assim ele conseguia esmagar a própria sombra, tão-pouco deixaria de ser o touro velho de sempre ruminando n´algum canto do cercado. Andara voando na juventude, mas eram vôos que não levariam ninguém a lugar algum que não fosse com as pernas, nem ao menos à Serra do Livramento, para onde logo mais iriam seus filhos, e cada qual com sua família, que lá os Tatajuba os esperavam. Na Serra com certeza estariam mais seguros.

Naquele instante João sentiu o primeiro coice da velhice. A tacada lhe viera no exato momento em que pensou em dar um basta em certas extravagâncias como aquela de querer enfrentar os Cavaleiros; mas em nenhum momento atinou em desistir de defender os culhões dos seus netos e bisnetos, pois daqueles pequenos sacos engelhados sairiam os homens do futuro, homens que também teriam culhões para coçar e até encher a mão com eles e dizer: "Ó aqui pra vocês!". E somente assim é que continuariam a ser os donos do algodão, do milho, dos rebanhos, da terra, das fêmeas, do ar para tomar fôlego.

Antes do sol se pôr, Zé Bode riscou o cavalo na porta da casa do pai. Chegou com tanto alvoroço, que João Sem-Medo teve um sobressalto. Pelo jeito como chegara o filho, devia de vir trazendo notícia de desgraça, notícia ruim debaixo do chapéu, dentro do casco da cabeça, desgraça em primeira mão, quente ainda.

- Atacaram Pelo Sinal e mataram o Padre - gritou Zé Bode.

- O quê?

- Mataram o Padre e todo mundo que estava com ele dentro de casa - completou Zé, arrastando as esporas já no assoalho da sala.

- Eu sabia, bem nas nossas barbas. Amanhã de manhã eles estouram por aqui!

Lá de fora o cavalo se desmanchava em suor e ouvia a voz de Zé Bode contando do desatino do Padre sendo empurrado para o abismo junto com os companheiros. O cavalo ouvia a voz do seu dono e batia os cascos no chão pilado do pátio. Quando Zé silenciou, João Sem-Medo soltou um berro:

- Miseráveis!

O cavalo focou as orelhas no giro da porta, socou o barro com mais vigor e empinando as patas dianteiras relinchou com toda a força de seus bofes.

O resto da história veio depois, mais devagar, com mais juízo, tão natural quanto o fato de homens cansados decidirem acampar para o pernoite, como fizeram os Cavaleiros um dia antes do acontecido. Assim que amanheceu, um Oficial deixou o acampamento junto com alguns homens e cavalgou até Pelo Sinal. A vila pelo visto estava deserta, mas o Cavaleiro, dizem, bem que desconfiou. Alguma coisa não estava lhe cheirando bem, então ele puxou as rédeas do cavalo e parou. A suspeita se confirmou de imediato quando um tiro esbagaçou o silêncio, um tiro seco e enviesado que o arrancou da montaria. Os companheiros acudiram, mas nada puderam fazer para salvá-lo.

Outros disparos se seguiram e todos vinham de dentro do casarão próximo à Igreja. Os Cavaleiros receberam reforços e concentraram fogo no rumo do casarão até o cair da noite, quando então decidiram suspender o revide. Daí em diante não se acendeu um fósforo, um binga sequer. O céu de Pelo Sinal estendeu um cobertor escuro de nuvens, talvez para que ninguém visse as estrelas, talvez para que ninguém percebesse o que estaria para acontecer pelas ruas e pelos becos, onde vultos e mais vultos se moviam na escuridão.

De manhãzinha a ponte estava a ponto de desabar, tantos os que ali se amontoavam para uma melhor visão dos dezessete corpos pendurados nos galhos da cajazeira, todos despidos e sem couro da face, mas mesmo assim as viúvas não tardaram em identificá-los. Apenas do gordo é que mulher nenhuma havia se aproximado. Ele tinha as banhas da barriga lhe cobrindo a genitália, a face esfolada, a cabeça no branco do osso, a mesma barbárie dos demais. A única diferença era a corda do pescoço que estava dobrada em quatro e só assim pôde suportar por toda noite o peso do corpo imenso e branco do Padre Evaristo Cananeu.

 

Fonte: ARAÚJO, Aldo Lopes de. O dia dos cachorros. Recife, PE: Bagaço, 2005.

 

CONHECENDO O AUTOR
 

Foto: Guy Joseph

Paraibano radicado em Natal, Aldo Lopes de Araújo nasceu na Serra dos Bernardinos, município de Princesa, onde passou quase toda a sua infância. Bacharelou-se em Direito pela UFPB e exerceu a advocacia e o jornalismo. Repórter e editor de cultura de alguns jornais da Paraíba, nos anos 80 e 90, colaborou com vários suplementos literários e revistas do gênero. Escreveu três livros: Lavoura de Olhares (A União, 1988); Solidão, Nunca Mais (Editora Universitária), ganhador do prêmio "Novos Autores" de 1996, promovido pela UFPB; e As Estátuas de Sal (Edições Varadouro, 2000), todos de contos. Participou das coletâneas Presença do Conto Paraibano, que reuniu os vencedores do concurso Jurandy Moura, e O Autor na Escola (Edição Secretaria da Educação), que selecionou textos de escritores locais para serem estudados nas escolas de 2º grau. Em nível nacional, integrou a antologia Contos Cruéis (Geração Editorial, São Paulo), organizado pelo escritor Rinaldo de Fernandes e que reúne contistas de vários estados do Brasil.

Fonte: ARAÚJO, Aldo Lopes de. O dia dos cachorros. Recife, PE: Bagaço, 2005.

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