Sobre o novo prêmio...
Um circo rodrigueano... no sertão da Princesa
Maria Betânia Monteiro - repórter da Tribuna do Norte
Entre
uma ocorrência e outra, o Delegado da Polícia Civil Aldo Lopes de Araújo
escolhe os verbos mais ativos, os substantivos mais significativos e os
adjetivos mais variados para dar voz e vez aos personagens e às
histórias de seus romances. Foi assim com “O Dia dos Cachorros”,
vencedor do prêmio Câmara Cascudo em 2005 e que ganhou a apresentação de
Ariano Suassuna, numa nova edição; e está sendo com “O Coronel e a
Dançarina”, título provisório de seu mais novo livro. A obra do delegado
foi escolhida entre outras duas mil inscritas num edital de fomento à
literatura, do Ministério da Cultura. O resultado foi divulgado ontem,
no Diário Oficial da União.
Júnior Santos
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Autor de “O Dia dos Cachorros”, o escritor Aldo Lopes teve seu novo
romance “O Coronel e a Dançarina” selecionado pelo edital de
literatura do MinC, no valor de R$ 30 mil |
Entre
os dois mil inscritos, sessenta foram selecionados em todo o país. Aldo
foi o primeiro da lista entre os escritores nordestinos. Em meio a
euforia do resultado, Aldo recebeu a reportagem do VIVER na delegacia
para falar sobre o livro e o seu processo de criação.
‘O Coronel e a Dançarina’ é um romance ambientado em Princesa, sertão da
Paraíba, a 440 km da capital João Pessoa, durante o ano de 1930. Aldo
conta que naquele tempo o governo havia estabelecido a política do
arrocho fiscal e do enfraquecimento dos coronéis, batendo de frente com
os interesses da aristocracia rural sertaneja.
Insatisfeito com as metas de governo do presidente João Pessoa, o
coronel Zé Pereira rompe com o governo e institui o Território Livre de
Princesa. Tem início a chamada Guerra do Algodão, deflagrada a partir da
criação do estado independente, com bandeira, hino, constituição e o
recrutamento de 2.500 jagunços para fazer frente ao avanço das tropas do
presidente João Pessoa que pretendia destruir o reduto dos rebelados. É
neste cenário conturbado, de clima tenso, que o circo de Epaminondas,
alheio até então aos acontecimentos, se instala. A partir daí a
narrativa ultrapassa as fronteiras do real para seguir a seara do
imaginário. O foco narrativo se desloca temporariamente para o cotidiano
destes mambembes, personagens de ficção, e vai cuidar dos seus dramas
internos que se exacerbam a partir do momento em que interagem com os
habitantes da cidade, a essa altura fragilizados pelos efeitos da
guerra.
Epaminondas Atirador de Facas, ferrenho defensor da arte circense, tenta
consolar seus companheiros de lona com promessas de melhores dias longe
de Princesa, tão logo acabe a luta e eles possam ir embora. Por conta do
cerco à cidade e com o público já saturado da mesmice das apresentações,
a trupe vive a maior pindaíba de sua história. É quando Epaminondas
decide selecionar talentos para aumentar o seu quadro de artistas e
assim oxigenar a bilheteria.
O cinema Santa Maria não tem outra saída senão fechar. Os piquetes das
tropas do governo não deixam entrar nada com destino a Princesa. Os
malotes de filmes são confiscados, da mesma forma que o são as provisões
de alimentos, remédio e combustível. A cidade só não mergulhou em total
desabastecimento porque o coronel Zé Pereira se prevenira com estoques.
A partir daí o circo passa a apostar nas figuras pinçadas das filas que
se formaram diante das lonas, criaturas bizarras como o Homem-Tronco e
os seis anões, sem esquecer o urubu dançarino, ave de estimação de
Heliodoro. Escolhido para o papel de Jesus Cristo, Heliodoro mata com
uma facada o soldado romano em pleno palco, por causa de uma disputa de
amor pela dançarina Mara Rúbia, sepultando definitivamente a atrapalhada
temporada de encenação da Paixão de Cristo.
A cena se desenvolve em meio a um linguajar fluido e marcado por
expressões fortes e pictóricas. O autor escreve: “Como desfecho, o que
podia ser um beijo ou uma fala qualquer de mansidão, acabou sendo o mais
inesperado: Jesus arrastou de dentro da túnica uma faca e enfiou na
barriga do legionário. O infeliz só fez botar os grandes olhos para fora
e gemer como um porco na hora do abate. Como se não bastasse a
determinação homicida do golpe, Jesus ainda remexeu a munheca para cima,
para baixo e pelos lados, só de ruim, aumentando o estrago nas vísceras
e nas tripas do infeliz, antes mesmo que este – banhando em sangue e
agonizando – desabasse sobre o tablado do palco para nunca mais se
levantar”.
Delegacia é celeiro de tipos humanos
Aldo Lopes revela que sua inspiração parte da convivência com os homens
e mulheres que chegam à delegacia no limite de sua humanidade. “Este
ambiente é eletrizante”. É lá onde homens e mulheres, vítimas ou
algozes, expõem suas fraquezas e grandezas. “A delegacia me ensinou o
que universidade nenhuma conseguiu, aliás, uma delegacia é o lugar mais
importante do mundo, mais importante do que os hospitais e os
cemitérios”. Apesar dos tipos humanos que circulam pela delegacia ser
sua fonte de inspiração, nenhum transformou-se em personagem de seus
romances. “As experiências que eu tenho aqui são cristalizadas e as
aproveito tempos depois”.
O Coronel e a Dançarina não tem data para ser lançado, já que o edital
do MinC tem a finalidade de subsidiar os escritores em seu processo
criativo, garantindo-lhes recursos que poderão ser usados ao desejo do
autor. “A partir do resultado dos escolhidos, as editoras despertam o
interesse publica-los”, diz Aldo, que vai receber R$ 30 mil do MinC.
A argumentação do autor
“Falo dos temas de minha origem com legitimidade, pois recebi, na rede
dos primeiros sonhos, a informação pela oralidade. Ninguém melhor do que
eu, portanto, para lançar mão dessa maravilhosa matéria-prima e escrever
um romance de fundamental importância para a compreensão de um pedaço do
Brasil que ninguém até hoje — pelos menos em forma de narrativa —
retratou.
Cresci ouvindo histórias do meu avô Manoel Lopes Ronco Grosso,
comandante de tropas do coronel Zé Pereira. Quando ele morreu, eu tinha
oito anos, mas seus relatos estão até hoje em minha memória.
Mais tarde, depois que fui estudar na capital, percebi a importância
daquelas narrativas. Era grande o interesse pela história da minha
aldeia, sobretudo no ambiente universitário. Tal constatação alimentou
em meu espírito, durante muito tempo, a necessidade de um dia
escrevê-las.
Essa intimidade quase visceral com os relatos do imaginário popular
acerca da campanha de Princesa, aliada à popularidade quase mitológica
do caudilho Zé Pereira — um estadista dentro dos limites da tragédia
sertaneja — foi o que mais me motivou a levar adiante o projeto do
romance.
A trama rememora fatos históricos cujos ferimentos ainda não
cicatrizaram de todo e traz para dentro desse “saco de gatos” a
contribuição oral das histórias reinventadas a partir do que aprendemos
em tempos imemoriais com os homens das caravelas vindos da Península
Ibérica. A aparente confusão entre acontecimentos reais e aqueles que se
suspendem pela via do imaginário confere verossimilhança ao romance.
A matéria de que trata o meu projeto ocupa um espaço vip no imaginário
da população. Tal qual a Verona de Shakespeare, em Romeu e Julieta,
rachada entre Montequios e Capuletos, a Paraíba, oitenta anos depois,
ainda vive resquícios das intrigas entre Perrepistas e Liberais, os dois
partidos políticos que se engalfinharam em 1930.
A saga do rei João Ferreira, em São José do Belmonte, sertão de
Pernambuco, foi tema de romances de José Lins do Rego (Pedra Bonita) e
Ariano Suassuna (A Pedra do Reino). Por que então a saga de Zé Pereira
com seu Território Livre não dá romance? Será que vamos ter de esperar
que apareça um Mário Vargas Lhosa para escrever outra guerra do fim do
mundo?”
Fonte: Tribuna
do Norte, 07 de agosto de 2010.


Biografia de Aldo Lopes