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LITERATURA
Última atualização: 22/08/2010
ALDO LOPES - SOLIDÃO, NUNCA MAIS
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Abaixo, segue o conto que intitula o livro. |
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SOLIDÃO, NUNCA MAIS Tudo nessa vida tem seu preço. É tome lá dê cá. O que hoje é chibata, foi tira do couro que antes vestia alguma rês na contentice do pasto. O bicho urra e desaba quando a peixeira range e rasga e o sangue espirra. E aí vem a raiva revirando as coisas e o mundo todo apanha nessa hora. O senhor está aí bem assentado, apreciando o divertimento, num passar-bem de sombra de juazeiro. O bem-bom do pé-de-pau verdinho e fresco fica muito mais bom nas horas de meio dia. O cabra se esparrama debaixo e dorme, mas nem sonha que as raízes rasgam a terra até bem longe, em busca d`água, numa eterna escravidão. Vê esse poste na calçada? Ia ser plantado lá embaixo, longe, longe. Mas eu dei duro, ajudando aos homens da Companhia. Um mês de luta, abrindo trilhas na unha-de-gato, carregando rolos de fios, cavando buracos. Enfim, a luz chegou. A casa se encheu de besouros, mariposas, uma infinidade de bichinhos de asa em que eu nunca tinha reparado. Até de gente como o meu tio Genebaldo. O senhor sabe como ele é. O tempo inteiro no mesmo lenga-lenga: voltar pro Entremontes, fazer umas hortas no baixio, tocar umas roças, umas vacas, não sei mais o quê. No fim, desata em lamentação. Que um caco de gente pode lá viver afastado do hospital, da igreja e do cemitério? Depois fica murcho, banzeiro, para mais tarde voltar com o mesmo enjôo. Enquanto isso, a minguada aposentadoria faz com que vá roendo a vida sem carecer de voltar pro Entremontes. Ele já tinha tomado a estrada lá em baixo, quando gritei: "Dê uma chorada, tio". Eu sabia que por vinte e cinco mil era botar pra comprar. Tio Genebaldo balançou a cabeça e a resposta veio três dias depois, nos carros da feira. Parou na Santa Rosa e ganhou a Serra em cascos de animal. Negócio fechado. Aí eu tratei de me virar. Sempre me virei nessas horas. Não quando podia, mas como podia. O burro, que já estava apalavrado, foi entregue. E o dinheiro, junto com o apurado das galinhas, de uma cangalha e de um rádio, estava firme. Até sobrou para as despesas com o transporte, que eu devia apanhar na Santa Rosa. Essa vida é mesmo um perde-e-ganha. O senhor veja que eu somente reparei na falta que faz um animal, quando me larguei a caminhar. Era descendo, eu sei, mas aqueles caminhos da canela d`Ema não têm mesmo fim. Quase uma hora de espera. Um mangangá zuniu seu motor de agave no entranhado das folhas e eu dei um pulo, pescoço esticado, botando sentido nos carros. Mas nada de carro. Alguém gritou. Era Pedro Baião que ia espiar a Tatairinha. Desde que se desfez dela, que se sente nos ares, sem chão onde possa firmar os pés com gosto e fé. Tudo por cegueira da mulher e dos filhos. Disse que a cabeça é um pedaço da gente que nunca devia de se encher demasiado. Mas aquele inferno de reclamação e chororô... Não tinha o rádio? A lua? A sanfona de papai? O vento nas aroeiras? Ah, isso é pro senhor. Nós toda noite quebra as unhas nessas estradas de Pelo Sinal pra num perder um pedaço da novela. Aí Pedro vendeu tudo e foram morar em Pelo Sinal. Na entrada da Tatairinha, parei pra me despedir. Meio sem jeito, Pedro até se perguntou o que iria fazer ali. Eu também fiquei meio sem jeito e vira-e-mexe e coisa-e-tal. E acabou nossa conversa. O canário que ele levava desatou a cantar em alvoroço. Bicho de estimação, brigador. Pedro abria a gaiola e só tornava a fechar quando o safado agarrava um coleguinha pelo cocoruto. "Eu vou é pegar passarim". Segui sozinho. Quatro léguas tiradas a pé. "Já estava a sua espera", disse a mulher, e me chamou para ver a encomenda. Antes eu pedi água. Água de copo e de bacia. Precisava matar a sede e tirar dos pés a poeira arranjada em quase um dia de andança. Nem sentei. Disse que estava com pressa. Passei o dinheiro e fui pro ponto onde os carros costumavam esperar os passageiros. A noite chegou e não apareceu nenhum. O jeito era voltar a pé. Arregacei as calças e tirei a camisa para fazer uma rodilha e forrar a cabeça. Nisso parou uma caminhoneta. Fiz menção de chegar a ela, mas dois soldados se aproximam fazendo perguntas. E, no instante em que eu disse "até logo", eles me agarraram pelo braço. Queriam saber onde eu tinha achado aquilo. Não pude responder logo, porque estava entalado de vergonha. Nunca homem nenhum me escorou. E eles me seguraram como quem segura um desses bêbados de fim de feira para descer a borracha. Meu primeiro intento foi rasgar o bucho dos dois com a peixeira de cabo de chifre que eu trazia enfiada nas calças. Que me importava, se eles me esbagaçassem na bala? Eu já não me achava um homem morto? O senhor saiba que de vergonha também se morre. Chupei o ar para dentro e quase estouro as bochechas para ele sair devagar, me ocupando, me dando tempo de pensar em outra coisa que não fosse desgraça. Foi bom, porque esqueci que era bicho, o que me facilitou encontrar resposta para os soldados. Pensa que bastou? Tivemos que voltar à casa da mulher. "Pelo amor de Deus, seus praças, o homem comprou e pagou". Voltei o mais depressa que pude e vi que a caminhoneta tinha se ido. Botei a encomenda na cabeça, virei as costas para a vergonha e me meti a desbravar a escuridão. Na ladeira do Sozinho, um clarão no céu me assegurou de que logo mais cairia chuva e eu ia precisar de uma lona. Não por causa da minha pessoa, mas pelo que eu ia levando. E tinha de ser naquela casa que era a única dali em diante. Passasse dela, alma viva só depois do riacho Taquari. O homem abriu a porta, de candeeiro na mão e enrolado num cobertor. Me ofereceu café. Agradeci. Só queria a lona. A boa criatura ainda rachou três fachos de pela-beiço e eu segui ladeira abaixo. O vento frio espetava minhas costas e parei para acender o segundo facho. Quando a chuva rebentou e o fachinho morreu, sacudi a lona por cima de mim e do que eu lavava e passei a tatear no escuro como um cego. Sacrifício maior só na noite em que desci metade da Canela d´Ema, abrindo caminho na capoeira com a titela ensangüentada. Meu pai me encontrou no outro dia num chiqueiro de porcos, a peixeira ainda enterrada. Não tive forças para arrancá-la e desmaiei, de dor e de morrência. Mas o bom dessa vida é a gente poder engabelar o Diacho. E pensar que, por aquela estrada onde eu babatava, trazendo esse troço aí que dele o senhor não desgruda o olho, um carro já passou comigo voando para o hospital! Perdi sangue como um porco sangrado. A tiarada e os primos todos correram para a cidade, agitados, vingativos, os noprós de veias quase pulando dos braços. Me encheram de sangue. O médico disse que eu não botava o dia seguinte. Mas no dia seguinte ele chamou meu pai num canto e disse que eu era um animal. Fiquei uns dias em casa, da cama pra cadeira e da cadeira pra cama. E, toda vez que eu me enxeria num movimentozinho a mais, as minhas tias caíam no chão agradecendo a Nossa Senhora. "Quando você ficar bom, vai em Solidão pagar umas promessas", era o que sempre me diziam e eu estava sempre a dizer: "chega que eu não agüento mais". Fiquei bom e acabei indo oito vezes em Solidão. Cada viagem de ida e volta eram dois dias de caminhão, sacolejando a bunda numa tábua dura. Olhe aqui as marcas das feridas que arranjei, subindo os quatrocentos e tantos degraus de Nossa Senhora! Depois disso, tomei uma providência: Solidão, nunca mais. As minhas tias afinaram de desgosto, mas agi em tempo, pois de sofrimento e aperreio na vida já bastou aquela noite, o frio da madrugada entrando todinho nas minhas tripas pela brecha da facada. Não morri, porque Deus é grande. E aposto que ele não estava segurando na mão do sujeito na hora em que o ferro piou nos ares. Ao sentir que já era do Taquari a água onde meus pés faziam chap-chap, botei os troços dentro da lona e mais a minha roupa e amarrei tudo no feitio de uma trouxa. E se alguém desse comigo àquela hora da noite, nuzinho e ainda mais com aquele tendéu na cabeça? Procurei com a ponta dos pés a pontezinha, mas vi que ela tinha se ido, porque eu fui aos poucos me afundando. A água gorgolejava forçada e terminei arrastado pela correnteza como um munduru de terra. Bebi água, quase morro afogado, mas não soltei a lona com os troços dentro. Tivesse fraquejado, logo no sopapo do primeiro galão que me cobriu, teria ficado sem ela. E com que cara eu ia amanhecer o dia, nu, correndo pelos baixios? Nessa agonia, depois de horas de luta com as águas que me levavam ao léu, um remanso me pegou e eu fui sacudido num banco de areia. Do jeito que caí, lá fiquei, como uma bosta, mas com a lona no colo, sentindo gastura de vômito. O clarear do dia achou o céu limpo e a água do riacho abaixada. O mundo estava pubo, o ar lodoso. Desfiz a bruaca e vesti a roupa. Tudo dentro da lona, inteirinho e enxuto. Na saída da Tatairinha, quase chuto a cara de Pedro Baião, bêbado, de sono trancado, no meio do tempo. E dentro da gaiola, partida e atirada ao lado, o pobre pássaro morto, uma porqueira de molambo ensopado. Acostumado à prisão, não imitou o gesto de liberdade dos outros que foram pegos naquela tarde. Nem para fugir da chuva. Em vão, tentei acordar Pedro Baião, mas fiz o benefício de arrastar ele para debaixo de um pé de aroeira. Nunca foi homem de beber. Nesse dia, caminhei como diabo e, quando botei os pés aqui em casa, todo mundo correu para ver a televisão. Os moleques quase choram de alegria, a mulher também. E pensa que fui dormir? Fiquei foi aí, assentado o dia inteiro e um pedaço da noite, grelado como o senhor, de olho duro. O quê? Não me ouviu? Deixa pra lá, esquece!
ARAÚJO, Aldo Lopes de. Solidão, nunca mais. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1996.
Universidade Federal da Paraíba
(UFPB) |
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Em 2008, no livro “Capitu mandou flores”, Aldo reescreveu o conto “Uns braços”. A antologia, organizada por Rinaldo de Fernandes (Doutor em Teoria e História Literária pela UNICAMP e professor de literatura brasileira na UFPB), celebrou os 100 anos da morte de Machado de Assis. Nela, reuniram-se, entre outros trabalhos, “contos recontados” por vários escritores brasileiros - todos baseados em textos originais do autor de Dom Casmurro - como Moacyr Scliar, Lygia Fagundes Telles, Raimundo Carrego, Daniel Pizza, Hélio Pólvora, Deonísio da Silva, o próprio Aldo Lopes, entre outros.
Em 2010, Aldo foi condecorado pelo Ministério da Cultura com a "Bolsa Funarte de Criação Literária", no valor de 30 mil reais, destinada a fomentar criações literárias inéditas. Neste último caso, concorreu com o livro O CORONEL E A DANÇARINA, disputando com 2 mil inscritos de todo o país.
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